Congresso: feministas mapeiam o conservadorismo
Pesquisa aponta: só mobilização pode superar conservadorismo do Congresso. Lá, 40% alinham-se ao “panico moral”; 57% evitam discutir aborto; 20% são contra atendimento às vítimas e apenas um em cada cinco defende valores progressistas
Publicado 08/02/2023 às 15:44 - Atualizado 08/02/2023 às 15:49
Depois de seis anos de intensos retrocessos, desmonte de políticas públicas e da ciência, que culminou em um projeto genocida de nação, respiramos aliviadas no dia 1º de janeiro, quando Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado de representantes das pautas progressistas e populares. Apesar desses novos ares que revigoram o Brasil, exatamente um mês depois, o Congresso mais conservador da história republicana tomou posse.
Dado que ameaças à democracia se ancoram também nas pautas antigênero, é fundamental entender o que pensam os/as parlamentares a respeito dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, violência contra as mulheres, concepção de família, cuidado e religião. Com esse objetivo, fizemos uma pesquisa sobre o perfil dos/as eleitos/as frente à agenda feminista e antirracista, com base nas suas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, YouTube e site oficial), durante o período oficial de campanha eleitoral nos dois turnos de 2022.
Com base nos resultados, também chamamos a atenção para a hegemonia masculina e branca que ainda perdura e se complexifica com a maior presença de mulheres eleitas de extrema direita que estão a serviço do patriarcado e das tradições coloniais. Tais parlamentares se apropriam das pautas feministas propondo soluções que acabam por fortalecer ainda mais as desigualdades de gênero de raça.
Controvérsias sobre a Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha e o enfrentamento à violência doméstica são temas que aproximam parlamentares em seus posicionamentos nas redes sociais, atraindo, inclusive, conservadores. Ela foi vocalizada por um quarto (25%) dos deputados/as eleitos/as em suas campanhas, e indiretamente defendida pela metade dos eleitos. No Senado, esse apoio aumenta para 64%.
Apesar dessa notável adesão, há baixa menção ao machismo como um problema estrutural no contexto de violência contra as mulheres: menos de 15% dos parlamentares, tanto na Câmara, quanto no Senado, tratam do tema nessa perspectiva. Como falar de violência contra as mulheres sem falar de machismo? A conta não fecha!
Essa falta de compreensão sobre como se estruturam as desigualdades de gênero acende um alerta sobre como as políticas relacionadas ao tema podem ser deturpadas. Um exemplo é o movimento de atrelar a Lei Maria da Penha a soluções punitivistas, conforme visto nas propostas das candidaturas conservadoras e de extrema direita que associam equivocadamente a posse de armas como forma de enfrentar a violência doméstica. Esse discurso, inclusive, é defendido por mulheres, como as deputadas Carla Zambeli (PL/SP), Julia Zanatta (PL/SC), Bia Kicis (PL/DF) e Magda Mofatto (PL/GO).
Como vimos não só nestas eleições, apesar da representatividade política ser uma agenda estratégica para os feminismos brasileiros e latino-americanos, não adianta eleger mulheres que não defendam nossas pautas em uma perspectiva progressista e antirracista. Ter apenas a defesa de mulheres e meninas em seu discurso de forma autoritária não efetiva políticas públicas em prol da transformação social. Tratamos desse assunto com mais profundidade na Série Histórica Mulheres e Eleições 1996-2012, onde problematizamos a “política de ideias”, o que é o mais importante para promover uma agenda orientada pela igualdade e justiça social, em comparação a “política de presença”, conforme articula a cientista política Anne Phillips .
A presença da ex-ministra Damares no Senado que, inclusive, foi muito bem votada no Distrito Federal, é um bom exemplo disso. Vemos o investimento da extrema direita nas mulheres à serviço do patriarcado, em defesa de pautas que as limitam aos papéis tradicionais de gênero – como boa mãe, esposa e dona de casa – e as unificam em uma categoria de “mulher” excludente e elitista, desconsiderando as especificidades de raça, classe e demais interseccionalidades. Queremos, sim, mais mulheres na política, mas mulheres que façam políticas de ideias!
Família é pluralidade
Outra pauta bastante cara para a agenda antidireitos é a imposição de modelo único de família patriarcal, cisgênero e heteronormativa. Essa ideologia restringe o exercício da sexualidade e de projetos de vida de populações LGBTQIAP+, assim como desqualifica outras composições de família, como a maternidade solo, exercida principalmente por mulheres negras no Brasil.
Como resultado, vimos que 35% do Senado é refratário a avanços no campo da pluralidade familiar. Além disso, 16% dos/as deputados/as eleitos/s sustentam posições de viés hierárquico, patriarcal e tradicionalista para o cuidado com os filhos. Estes dados demonstram que esses/as parlamentares se elegeram por meio de discursos patriarcais e misóginos proferidos em suas campanhas. Apesar da pouca representação, muitos/as eleitos/as ainda não se posicionaram sobre o tema, o que demonstra que esse número pode ser ainda maior.
Violência sexual e aborto devem ser pautas integradas
A violência sexual e o aborto são temas que devem caminhar juntos. Exemplo disso são as notícias que estouraram na mídia a respeito das meninas menores de idade, do Espírito Santo, Piauí e Santa Catarina que enfrentaram uma série de barreiras ilegais impostas pelo próprio Estado para conseguirem acessar o direito ao aborto legal em caso de estupro, negligenciando direitos e os procedimentos de cuidado configurados nos permissivos legais brasileiros.
Ao contrário de eleições passadas, em que o aborto foi moeda geral de troca política, o tema do aborto não foi tratado de forma majoritária: 57% dos/as deputados/as não mencionou o assunto durante suas candidaturas e a mesma quantidade não se posicionou sobre a violência sexual.
Ainda mais escandaloso, os grupos contrários ao atendimento para vítimas de violência sexual representam mais de 20% dos/as deputados/as eleitos/as.
Nenhum dos senadores/senadoras se posicionou favoravelmente ao direito de interrupção da gravidez nas redes sociais. O cenário que podemos indicar é que apenas 5% é presumivelmente favorável, contra 22% explicitamente contra. Quanto à violência sexual, apenas 6% se posicionaram favoráveis a medidas de apoio e proteção às vítimas de violência sexual.
Grupos ideológicos
Visto os posicionamentos reacionários, racistas, misóginos e lgbtqia+fóbicos dos/as parlamentares eleitos/as, criamos cinco grandes grupos ideológicos para localizar os/as deputados/as frente à agenda feminista (lembrando que uma pessoa pode estar em mais de um grupo).
Os resultados são desafiadores para nós: o grupo armamentista é composto por 10% da Câmara. O grupo religioso, formado principalmente por defensores da agenda contra o aborto, onde se localizam os e as eleitas mais antagônicas à agenda feminista, compreende aproximadamente 20% dos/as eleitos/as.
Além deles, o grupo da pauta de costumes são representados aproximadamente por 25% dos/as eleitos/as. Eles são defensores da “família tradicional”, apegados a argumentos com base essencialista, que desqualifica a sexualidade da população LGBTQIAP+. Temos também 40% dos eleitos classificados no grupo das/dos conservadores, alinhados às pautas de costumes, mas apoiam algumas lutas das mulheres, sobretudo o combate à violência de gênero e a violência doméstica. Por fim, temos aproximadamente 20% dos/as eleitos/as são do grupo feminista, que reúne parlamentares antirracistas que se elegeram apresentando pautas dos direitos das mulheres e da diversidade sexual.
Democracia em ataque e a resistência feminista e antirracista
Com base nesses resultados, temos a Câmara dos Deputados e o Senado Federal com bancadas ainda mais conservadoras, com uma extrema direita consolidada para lidarmos nesses próximos anos. Isso impõe a tarefa ainda mais atenta de monitoramento e articulação política por parte dos movimentos feministas e antirracistas.
Respiramos aliviadas com o resultado das eleições presidenciais e celebramos as belas posses dos ministérios representados por minorias sociais, mas muitos desafios ainda virão pela frente. A forma com que representantes do Estado lidam com esses temas também são termômetros para medir a nossa democracia, em estado de fragilidade. Pouco mais de um quarto (28%) de deputadas/es/os federais eleitas/es/os concordam com a ideia de que religião e política não deveriam se misturar. No Senado, 36% de senadores/as concordam com a mesma ideia. Assim vemos o risco colocado para que a laicidade do Estado seja afirmada no Brasil. E os reflexos desta tensão respingam não apenas nas pautas que defendemos aqui, mas em todos os direitos da população.
Em perspectiva macrossociológica, os dados com que trabalhamos refletem também a normalização da pauta antigênero no Brasil, através da chamada “ideologia de gênero”. Este é um movimento transnacional, inclusive muito bem arquitetado, para impingir ao mundo uma pauta moral que luta para redomesticar corpos insubmissos e insurgentes ao script do patriarcado e do capitalismo neoliberal, como bem analisa a pesquisadora feminista Sônia Correa, integrante do Observatório Sexualidade e Política, a SPW.
As hordas antidireitos fermentadas por Olavo de Carvalho, Bannon e Dugin, originais pensadores dessa ideologia, obtiveram êxito em disseminar no mundo e no Brasil o pânico moral contra os movimentos feministas e LGBTQIA+. Como sustentação, é alimentada a ameaça pulsante do fantasma do comunismo em parte da população cristã e/ou insatisfeita com os governos petistas, que deram o status de estadista a um homem de desqualificada carreira parlamentar, cujo o mérito terá sido congregar uma parte da sociedade brasileira que rejeita sua própria história sobre a formação política-cultural brasileira, desde sua origem, como colônia de Portugal, nossas raízes escravocratas, de extrema violência e racismo. Este grupo subverte a linguagem e os objetivos de justiça social defendidos pelos direitos humanos, ao mesmo tempo que esperneia para não abrir mão das estruturas de desigualdades que sustentam os privilégios do elitismo, do classismo e da branquitude.
Como diria Angela Davis, a liberdade é uma luta constante. E a defesa da democracia também é.
(Para acessar mais detalhes da pesquisa, acesse o sumário executivo em nosso site, clicando aqui.)